Um traje histórico se constrói de dentro pra fora, pois são as peças que vão embaixo de um vestido que ainda que não sejam vistas, trazem os volumes, estruturam o corpo, criam uma silhueta. O meu último projeto de costura histórica foi um traje renascentista, e minha persona para essa recriação era uma mulher de classe alta, que morava em Pisa, na região da Toscana na Itália, em meados de 1550 - 1560. Foi esse o recorte que utilizei na minha pesquisa para confeccionar as peças, e você pode conferir todo esse processo logo abaixo.
Camicia
As camicias - também chamadas de Smocks - do século XVI geralmente eram feitas em linho, com as costuras reforçadas e embutidas. No recorte que eu escolhi, da segunda metade do século em Toscana, os decotes eram mais baixos e a modelagem em evasê, com a utilização de nesgas nas lateriais. A renda de agulha foi muito desenvolvida na Italia e quis trazer detalhes que remetessem a isso. Minha principal referência de modelos e medidas foi esse exemplo exposto no Museu Museo del Tessuto, a camisa do meio na imagem acima, mas eu quis fazer ela menos volumosa no corpo, como os outros exemplos.
Molde e corte:
O molde da camicia é composto de formas geométricas, basicamente. Eu planejei as medidas que utilizaria em um papel, e marquei o molde diretamente no tecido. Vou deixar aqui de exemplo meu plano de corte, mas aviso que precisei ajustar alguns pontos depois de cortar. O decote eu preferi deixar ele inicialmente mais alto e fechado, e abrir depois conforme eu sentisse necessidade na prova.
Confecção:
Como tecido principal utilizei vicose, por ter caimento e toque semelhante a um linho fino. Eu resolvi costurar na máquina, utilizando costura francesa como acabamento, para que ficasse reforçado e ainda fosse uma peça rápida de fazer. Comecei unindo os ombros, e logo em seguida finalizei a gola com uma barra de lenço.
Apliquei as mangas já franzidas, e então os quadradinhos das axilas e as laterais. Em seguida fechei as laterais, do corpo e das mangas também. Por ultimo apliquei os punhos e fiz a barra na parte inferior. Para enfeitar, apliquei renda de algodão na gola - onde também passei uma fita de cetim para ajustar - e nos punhos, que são fechados por botões de pérolas e cordões feitos na agulha com linha de pesponto.
Resultado final:
Gostei bastante do resultado final! Acredito que eu poderia ter feito as mangas ainda mais volumosas considerando os detalhes da manga do vestido que iria por cima, mas ainda assim o resultado que alcancei foi bem plausível pra época. Ainda estou pensando se futuramente acrescento bordados ou não.
Stays
Não existem muitos exemplos de stays desse período sobreviventes nos museus, então me baseei basicamente nesse modelo de 1598 que foi utilizado por Sabina na Alemanha. A peça original foi feita em seda, com duas camadas de linho e forrado. Nas bordas foram aplicadas fitas também de seda. Nas caneletas haviam barbatanas de baleia.
Ele é um pouco posterior às outras referências que estou utilizando, mas ainda assim acredito que fez sentido utilizar nesse traje, já que ter um stays significava que eu não precisaria estruturar tanto as peças que iriam por cima. O stays também não era uma peça tão comum na Itália, sendo utilizado mais por mulheres de classes mais altas, o que também se encaixava com o que eu estava buscando representar.
Molde e corte:
Eu tracei o molde dos stays do zero nas minhas medidas, tendo como referência a modelagem disponibilizada no Patterns of Fashion. Antes de cortar as peças no tecido final fiz um teste de modelagem com outro tecido.
Confecção:
Eu utilizei tafetá sintético na camada exterior,entretela termocolante, sarja como camada intermediária e tricoline de algodão de forro. E para decorar, fitas de gorgurão. A união dos paineis e costura das canaletas foram feitas na máquina, enquanto a aplicação das fitas e abas foram feitas à mão. Para economizar tempo, utilizei ilhóses de metal.
Na região do busto coloquei uma camada de lona; não encontrei evidências de que essa era uma prática comum, mas me pareceu fazer sentido para que a área pudesse ter o suporte adequado pros seios. Para substituir as barbatanas de baleia, utilizei barbatanas sintéticas reforçadas, que aparentam ter uma rigidez semelhante com o que seria utilizado. Para preencher a canaleta do busk, utilizei algumas camadas de plástico que tinha por aqui.
Se quiser saber mais sobre a construção dos strays, eu gravei um vídeo curto mostrando, você pode visualizar no TikTok ou Instagram.
Resultado final:
Fiquei bem satisfeita com o resultado! Infelizmente coloquei um ilhós a mais sem perceber porque eu estava consultando duas fontes diferentes para posicioná-los e me confundi, mas nada que atrapalhe o uso. Acho que acertei bem a modelagem e caimento, que traz esse aspecto cônico comum na era elizabetana.
Kirtle
Essa peça era chamada de Sotanna na Itália, e o modelo contemporâneo à época que eu estava reproduzindo possuia o tronco bem estruturado, e uma saia pregueada em paineis retangulares. A referência que utilizei também era da região de Pisa, de meados do século XVI
Molde e corte:
Tracei o molde do corpo nas minhas medidas, já utilizando o stays. Escolhi deixar a abertura na parte de trás, e para a saia utilizei um retângulo mesmo, com 3m de largura, que seria adequado de acordo com as pesquisas que encontrei. Escolhi um decote mais baixo para que não ficasse aparecendo por baixo do vestido externo.
Confecção:
Utilizei sarja de algodão como tecido principal, lona de algodão pra estruturar (substituindo o buckram), e tricoline para o forro. Dessa vez os ilhóses também foram de metal. Comecei unindo os paineis do tronco, e logo em seguida pespontei as bordas do tecido externo por cima da lona, para prendê-la. A saia eu comecei fazendo a barra enquanto já aplicava o feltro na borda, como no modelo original. Fiz as pregas na cintura e então uni corpete e saia, com pesponto. Internamente, prendi à mão a lona em alguns pontos que senti que precisava de reforço, e apliquei o forro com felling stitch.
Resultado final:
Bom...é um Kirtle, rs. Eu sinto que costurar toda a parte de cima na mão faria uma boa diferença, mas eu simplesmente não tinha tempo hábil para tanto. Mas fora isso, gostei bastante do resultado e principalmente do caimento que ele dá para a saia e o suporte pro busto.
Partlet
Principais referências:
Ou coletti, na Italia. Era uma peça feita em linho, geralmente branca, para proteger do sol ou acrescentar modéstia aos trajes. Ironicamente, na região de Pisa, essa peça costumava cobrir apenas os ombros, deixando os seios ainda à mostra, rs. A partir da metade do século XVI as partlets passaram a ter a gola mais alta e decorações mais complexas, e foi em modelos assim que me inspirei. Não achei uma peça sobrevivente, então escolhi como principal referência um retrato da Eleonora di Toledo de 1549.
Molde e corte:
Para o molde, busquei fontes secundárias, de outros recriadores. Eu basicamente tracei de forma bem simples um corpo nas minhas medidas, e desenhei os recortes do partlet por cima. O comprimento vai até abaixo dos seios, e a gola alta é cortada junto do restante da peça.
Confecção:
Aqui a parada foi complexa, rs. De materiais utilizei o voal e um soutache metalizado. Eu não queria lidar com o voal desfiando enquanto aplicava o soutache na mão, então resolvi primeiro fazer as aplicações para então cortar o tecido, o que foi infinitamente mais trabalhoso e desisti na metade do processo, rs.
E então, quando cortei o molde, ainda tive que finalizar as bordas de um dos sentidos da fita e aplicar o outro sentido no tecido já cortado. O restante das costuras também fiz à mão, unindo ombros com costura francesa, finlizando as outras bordas com barra simples e então aplicando fitas de gorgurão nas bordas inferiores para fechar embaixo do braço.
Resultado final:
É uma das peças que mais gostei! Quando terminei fiquei curiosa pra saber como seria feito a parte interna da gola, porque pelas pinturas parecia haver um revel mas não encontrei evidências desse tipo de técnica na época...mas ainda assim gostei do meu partlet com as costuras internas aparecendo. Acabou sendo uma das peças que mais me deu trabalho, mas acho que valeu a pena.
E assim consegui finalizar um conjunto inteiro de roupas de baixo renascentistas pra mim! Estou bem contente de iniciar em um novo período histórico, tendo as roupas de baixo agora fica mais fácil para fazer novos modelos.
O vestido principal que fiz para compor esse traje também já está finalizado, e será um dos próximos posts aqui no blog. Sintam-se livres para sugerir também novos temas!
Até a próxima!
Fontes de pesquisa:
Costuming for the lower and middle class, Claudia Laughter e Rydell Downward.
The Tudor Tailor: reconstructing 16th century dress, Ninya Mikhaila
Vendo você descrever o processo, fica parecendo fácil. Mas imagino o grau de dificuldade para se construir peças, onde as referências são tão escassas. Belíssimo trabalho. Parabéns, Juliana! Estou curiosa para ler sobre o traje principal (externo).
ResponderExcluirA roupa de baixo ficou linda, lembra do figurino da Drew Barremore em "Para Sempre Cinderela", adorei. Que bom que postou no blog, adoro ver todo o processo por escrito.
ResponderExcluirFico feliz com teu retorno, Juliana! Teu talento é visível e tua dedicação sempre me inspira. PS. Arthur falando , porque não sei como colocar meu nome no comentário kkk
ResponderExcluirAcho que vou usar o seu kirtle como referência quando for fazer o meu vestido de Bela ♡
ResponderExcluir