quarta-feira, 15 de abril de 2020

A moda esportiva no século XIX

Le Chalet du cycle au bois de Boulogne

    Da mesma forma que o que vestimos hoje numa reunião de trabalho é diferente do que utilizamos em uma festa ou na academia, o mesmo era aplicado durante a Era Vitoriana. Nesse período podemos ver a formação de distinções bem rigorosas entre as roupas dependendo da hora e da circunstância, e errar na escolha poderia ser considerado uma falta de decoro. Ainda sim, muito se fala sobre a diferença entre vestidos diurnos e noturnos mas pouco sobre o que era utilizada durante as práticas esportivas na era vitoriana. Então esse é o tema do post de hoje ;)


Os lazeres vitorianos durante a segunda metade do século XIX

   Antes de começarmos a falar sobre a moda é necessário situá-la em seu contexto histórico. O que muda na sociedade para que seja necessário o uso de roupas esportivas? 
    Parte da resposta está na Revolução Industrial. As inovações tecnológicas da época tiveram inúmeros efeitos na sociedade mas iremos nos ater a dois: a noção de tempo livre e a evolução dos transportes.
    As jornadas de trabalho em fábricas e indústrias eram extremamente exaustivas e o trabalho consumia boa parte do tempo da classe trabalhadora. Surgem então reivindicações para que haja mais tempo de descanso para os funcionários. O “tempo livre” é uma das invenções mais representativas da revolução industrial.


“De fato, na sociedade industrial o tempo de trabalho é central, e assume intensidade e ritmos dificilmente suportáveis para os trabalhadores; é por isso que surge e toma corpo o tempo livre, assim como é concebido ainda hoje: um tempo em que cada um pode dedicar-se - conforme as próprias aspirações e fora das necessidades e obrigações profissionais, familiares e sociais - a diferentes atividades para descansar, divertir-se e enriquecer a própria personalidade.” Daniela Calanca.

    É no decorrer da  segunda metade do século que o conceito de férias - uma mudança necessária das atividades do dia a dia -  é implantado. A partir de 1870 a burguesia passa a imitar os hábitos aristocráticos de passar uma temporada fora durante o verão e parte do outono, ou pelo menos ir para o campo durante os fins de semana. O esporte é então visto como um sinônimo de progresso,velocidade e aperfeiçoamento. 
   O desenvolvimento dos meios de transporte transforma a experiência de viagens, e consequentemente, de férias. Os trens diminuem o tempo de deslocamento até praias , tornando esse tipo de passeio mais frequente. 
   Numa sociedade em que a forma de se vestir mudava de acordo com a ocasião, o vestuário se adapta ao estilo de vida e segue o mesmo caminho, e então surgem roupas para atividades mais específicas, como o esporte. 

O início das roupas esportivas
exercícios físicos vitorianos
    Historicamente atividades físicas eram algo desencorajado para mulheres por acreditar-se que poderiam atrapalhar na fertilidade. Mas então a dita 'fragilidade feminina' passou a ser um problema a ser resolvido com exercícios leves que melhorassem a saúde, e vários doutores passam a indicar caminhadas, longas e calmas. A Cassel's Househood Guide - uma revista feminina - inclusive publica um guia de exercícios para mulheres, que consistem basicamente em exercícios de calistenia.
   A vestimenta indicada incluía bloomers no comprimento dos tornozelos, uma camisa folgada e uma saia curta, abaixo dos joelhos. Algodão era o tecido mais indicado e o uso do espartilho desencorajado, mas uma faixa drapeada (sash) era amarrada na cintura para marcar a silhueta. Tornar o conjunto feminino e bonito era uma tentativa de contornar a resistência das garotas em fazer exercícios e parecer estranha por isso.

esportes femininos vitorianos

    O arco e flecha e croquete foram uns dos primeiros esportes amplamente aceitos para mulheres. Não envolviam muito movimento do corpo e nem roupas especiais ou que seriam consideradas impróprias. O croquete por exemplo poderia ser jogado mesmo com o uso de crinolinas e corsets, e começou a ficar mais pular no fim de 1860s. 

O Traje de montaria 

trajes de montaria vitorianos

    Os vitorianos adoravam cavalos e estes eram utilizados desde o início do século XIX para lazer e transporte. Mas enquanto homens estavam sempre prontos para montar em celas, as mulheres necessitavam de vestimenta especial.
     Apesar de se assemelharem aos vestidos diurnos, os vestidos de montaria costumavam ser compostos de casacas, coletes, camisas brancas e cartolas, imitando a moda masculina. Tecidos em tons escuros eram o ideal e as peças não eram muito enfeitadas. Trajes de montarias mais elaborados  eram reservados para ocasiões especiais como caçadas e passeios em parques da cidade. Uma observação interessante pode ser feita sobre o comprimento das saias, que eram mais longas que o comum para que formasse um drapeado na montaria, e por dentro da barra era utilizado uma faixa de couro para proteger o tecido do atrito. Apesar disso, dispensava-se anáguas e podiam ser utilizadas calções por baixo da saia, no mesmo material do restante do vestido. O corpete era ajustado no corpo mas com as mangas mais soltas, para não restringir movimentos. O uso de botas e luvas de couro era indispensável. 

Vestidos de tênis

vestidos de tênis vitorianos

    O tênis foi um jogo inventado em 1860s por um oficial do exército chamado Walter Wingfield e o esporte foi patenteado em 1874, se tornando bem popular entre as mulheres, que jogavam em festas em jardins ou clubes.

"As primeiras garotas a jogar o recém criado tênis vestiam seus mais estilosos vestidos diurnos - sem crinolinas, que já estavam fora da moda, mas fortemente espartilhadas e com longas, drapeadas saias, presas para cima nas costas afim de formar anquinhas." Ruth Goodman

   Inicialmente, a vestimenta utilizada eram os vestidos diurnos, com todas as suas camadas. É na década de 1880s que roupas desenhadas especialmente para situações esportivas se tornam algo comum em revistas de moda e seus anúncios. As mudanças nesse tipo de vestuário incluíam um comprimento ligeiramente mais curto das saias e chapéus menores. 
    No tênis era comum usar um avental nas partidas para proteger o vestido de sujeiras. Em 1890s os cinturões suíços estão em voga e seu uso é indicado em detrimento do espartilho, por ser uma peça menos restritiva. A peça promovia mobilidade sem comprometer a estética da cintura fina que era popular na época. É também nessa década que revistas começam a apresentar modelos de vestidos feitos especificamente para serem usados em partidas de tênis.
    Uma padronagem comum nesses trajes eram as listras e xadrezes, e em relação a cores era preferível as claras como branco, creme e bege. Na década de 1890s as roupas passam a ser ainda mais confortáveis, com o uso de espartilhos adaptados para a prática de esporte. 

Trajes para patinação

vestidos de patinação vitorianos

    A patinação no gelo já existia há milhares de anos, mas foi na era vitoriana que se tornou um favorito. No inverno, pistas de patinação no gelo eram montadas em lugares públicos como lazer para a população. O esporte se tornou extremamente popular entre a elite inglesa, se tornando um evento social e consequentemente gerando a necessidade trajes adequados não só do ponto de vista funcional mas também do estético. 
  A primeira adaptação é o comprimento das saias, que costumam ser na altura dos tornozelos e usadas sobre anáguas acolchoadas. Cores vibrantes são as preferidas e observa-se também um maior uso da lã e tecidos acolchoados, frequentemente decorados com pele nas extremidades. Um acessório típico é o muffin, para esquentar as mãos. 

Trajes de banho

moda praia vitoriana
    Na Europa, a exploração da água como lazer surge no início do século XIX, e o primeiro estabelecimento de banho de mar é fundado por Dieppe em 1822. "As águas são para o verão o que os salões são para o inverno", diz o Jornal de Las Dames junho de 1846. No século XIX praticamente metade da população tinha meios de passar um feriado em alguma praia. E com isso, surge a demanda de roupas mais adequadas para os banhos de mar. 
   O traje de banho consistia de vestido e calçolas; o conjunto geralmente era feito no mesmo tecido e possuía decorações em cores contrasteantes. O espartilho para banho é desenvolvido para deixar mulheres que estavam acostumadas a usar roupas justas mais confortáveis em seus trajes de banho, que geralmente consistiam de peças soltas e largas. Boa parte das vezes essas roupas eram mais uma desculpa para usar trajes elegantes e diferentes pelas famílias que estavam viajando, mas também cumpriam sua função como roupas esportivas. Já escrevi um post especificamente sobre eles aqui no blog.

Traje de ciclismo 


roupas de ciclista vitorianas

    Andar de bicicleta com as saias e anáguas comuns era uma tarefa praticamente impossível, e quando ouve o boom da atividade em 1890s, junto vieram várias patentes de peças do vestuário desenvolvidas exclusivamente para o ciclismo. O esporte acaba se tornando um pretexto para a criação de roupas extravagantes, o que atrai críticas e caricaturas.
    O comprimento das saias era nitidamente menor, e algumas até mesmo possuíam cordões para que as mesmas pudessem ser franzidas até acima do joelho. Polainas eram utilizadas para proteger as botas. Uma grande característica das roupas de ciclismo são as mangas extremamente volumosas, e o uso de casacos com fortes referências na alfaiataria. Para climas mais amenos, haviam suéteres e camisas que seguiam as mesmas características. Também é a prática de ciclismo que ajuda a popularizar o uso de calças entre mulheres com os bloomers, que eram bermudas bem volumosas e compridas inventadas por Amelia em 1840, mas até então considerada uma peça controversa e não muito popular.  

   No fim do século XIX o desenvolvimento do transporte culmina na invenção do automóvel, o que novamente gera demanda para um vestuário específico, com o costume de usar véus e guarda-pós na viagem. No século XX as mulheres começam gradualmente a participar das Olimpíadas e a presença feminina no esporte é consideravelmente maior, mas aí já é assunto para outro post, certo?

Referências bibliográficas:
História da vida privada,Georges Duby e Philippe Ariès

How to be a victorian, Ruth Goodman
História social da moda, Daniela Calanga
Moda uma filosofia, Lars Svendsen *

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